Chuva Ácida - Prólogo e Capítulo 1

Prólogo - Como era o mundo dos humanos

Nem tão lindo, nem tão feio. Assim era o dia e assim era a vida. Era de se esperar que as coisas estariam todas resolvidas. Apenas algumas estavam.

Não havia nada novo no horizonte e a pequenice humana ditava as regras dos grandes acontecimentos do último século: guerras, disputas políticas, reformas de sistema, furacões e enchentes localizadas. Nada desestabilizou o planetinha azul como um todo, nem mesmo uma guerra global surgira; talvez por isso tanta coisa tenha caminhado tão bem no lado da ciência.

Ninguém inventou viagem no tempo nem a imortalidade, mas estava muito claro que as coisas estavam melhorando havia séculos e esse loop positivo mantinha as coisas bem estáveis.

Sim, o desmatamento foi brutal e a diversidade sofreu, mas ninguém esperava que um bilionário sozinho iria conseguir transformar o saara numa floresta. A tecnologia e a engenhosidade humana bem aplicadas são capazes de transformar tudo, para o bem e para o mal.

Os caóticos perderam a aposta, a população não cresceu para o infinito nem houve o desaparecimento da espécie. O erro da previsão era não levar em conta a auto regulação que a democratização do conhecimento trazia. Se a previsão era 11 bilhões de pessoas em 2300, quase deu certo. Em pleno 2370 não chegava a 12; era uma breve retomada do declínio dos anos 2200.

Uma coisa não mudou: os instintos naturais dos seres humanos permaneceram inalterados. Suas funções biológicas foram aumentadas e melhoradas, mas ainda se alimentavam e dispensavam os rejeitos da mesma forma que sua origem remota no passado, por isso hábitos de alimentação não mudaram tanto assim, então os eventos de alimentação ainda eram o centro de muitas interações sociais.

Dentre todas as mudanças (inesperadas ou não), sem dúvida alguma, o que trouxe mais impacto nas relações humanas foi o aumento expressivo da longevidade. As pessoas vivem muito mais e chegar aos 120 anos se tornou comum. Isso oferece mais tempo para errar em tudo e tentar novamente. E a possibilidade de errar mais é o que mais impacta o comportamento.

Do lado político, a forma mais comum de gestão é a democracia participativa. Com isso cada país vira a cara do povo. O grande monumento do dr Tnx (a última moda dos últimos 30 anos eram nomes com consoantes apenas… E Tnx era o mais comum de sua geração), que achou a cura para 3 graves doenças no século passado (com ajuda de supercomputadores, claro), virou o grande sacón. A escultura foi criada por colaboração e selecionada por voto. E o povo votou na escultura do pobre médico numa versão à paisana - digamos assim. Ninguém sabia se a desproporção sacral era obra do imaginário coletivo ou algo baseado em fatos reais, mas a zoeira vive agora exposta em praça pública. Ele teria achado o máximo, pois além de cientista, era conhecido por redigir contos tão sacanas quanto divertidos. A desgraça foi que acabou por se tornar personagem de sua própria imaginação.

Os tipos de relacionamentos mudaram bastante. Formação de pares entre homens e mulheres ainda são comuns, mas as combinações são as mais variadas. Talvez o mais recente sejam as casas de compartilhamento total, que lembram antigas repúblicas, mas com relações abertas e multilaterais. Um bom arranjo econômico, variando de centros com abertura para crianças e outros onde não são aceitas.

Padrões de comportamento são uma coisa evolutiva e mutável, mas o que alterou o bicho humano em definitivo foi reprogramação genética.

Tudo começou com o fim das dores físicas: era para ter sido um experimento viral de condução de modificação de DNA e acabou se tornando uma infecção descontrolada. A infecção viral tinha como alvo células nervosas e, quando se descobriu o que estava acontecendo no mundo, já era tarde demais (os efeitos levavam anos para começar a se manifestar). Para piorar, surgiu uma dúvida quanto à aplicação da correção: será que ela não poderia causar mais mal ainda? Então nada foi feito e os humanos passaram a conviver com essa modificação genética global, como se já fizesse parte da espécie.

Como as pessoas já praticamente não sentiam dores físicas, muitos estavam mais felizes com essa modificação; mas o convívio prolongado com um mundo sem dor trouxe mais surpresas: Sem relativização, as pessoas se tornaram muito mais sensíveis emocionalmente e as dores emocionais se tornaram a pior dor existente.

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